domingo, 16 de outubro de 2011

A HISTÓRIA DE 16 ANOS DO “CINE ECO”. 1

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Entre 1995 e 2010 fui director do Cine Eco, Festival Internacional de Cinema e Vídeo do Ambiente da Serra da Estrela, Em 2011, sem qualquer razão ou justificação plausíveis, fui afastado da sua direcção pela actual vereação da Câmara Municipal de Seia. Fica aqui registada uma súmula da história dos dezasseis anos deste festival, enquanto dele fui responsável, com algumas considerações finais sobre o meu afastamento e da “nova fórmula” anunciada.
O texto das primeiras quinze edições é repescado do Historial publicado no Catálogo do Cine Eco de 2009, a comemorar as primeiras quinze edições.

1. COMO NASCEU O “CINE ECO” EM SEIA


Conhecia bem Seia desde 1979, quando aí estivera instalado, na Pousada, com a equipa da “Manhã Submersa”. As filmagens de exteriores decorreram em Linhares da Serra, a poucos quilómetros de Melo, aldeia natal de Vergílio Ferreira, mas tanto técnicos como actores ficaram a pernoitar em Seia, durante um Inverno inóspito. Curiosamente, quase todas as equipas de filmagem esperam que o mau tempo passe para iniciarem a rodagem do filme. No caso da “Manhã Submersa” aconteceu precisamente o contrário: mantinha-me em Lisboa com a equipa pronta a arrancar mal me dissessem da Serra da Estrela que o temporal, de preferência com muita neve, se tinha abatido sobre a região. Partimos para Seia em fins de Novembro, inícios de Dezembro, não recordo bem o dia certo, mas foram duas semanas de intenso trabalho, intensa neve, intenso frio, intensa chuva, intenso temporal. Tal como fora sonhado. Saíamos para a jorna às 8 da manhã, regressávamos muitas vezes noite alta, mas foi durante esse tempo que mantive um primeiro contacto íntimo com esta cidade, que já conhecia, no entanto, de anteriores passagens. Mas curtas.
Foi com Manuel Guimarães que pela primeira vez visitei Seia. Filmava ele o seu derradeiro filme, “Cântico Final”, eu e a Eduarda (o Manuel Guimarães fora nosso padrinho de casamento) fomos visitá-lo à Serra e foi ele que me apresentou Vergílio Ferreira, autor do romance donde partia o seu filme. Foi esse contacto que fez nascer a ideia de rodar “Prefácio a Vergílio Ferreira”, em 1975. Vergílio Ferreira era um escritor que eu já muito admirava (sobretudo por dois romances que eu lera em jovem e me marcaram bastante, “Manhã Submersa” e “Aparição”) e por quem me apaixonei ao primeiro contacto. Era aparentemente um homem fechado e distante, mas essa era uma opinião superficial ,que um convívio mais regular alterava profundamente.
O filme de Manuel Guimarães foi rodado no Inverno de 1974 (e só estreado a 16 de Junho de 1976, depois da morte do realizador, tendo sido terminada a montagem pelo filho, Dórdio Guimarães), a minha curta-metragem foi iniciada na Serra da Estrela, nesse mesmo ano (e terminada em 1975, tendo acompanhado na estreia “Cântico Final”, como seu complemento). Depois voltei a Seia em 1979 para escolha de locais de filmagem para “Manhã Submersa”, acompanhado pelo então meu assistente de realização, Mário Damas Nunes. Ainda como preparação para a rodagem da longa-metragem, regressei à Serra, para rodar “Vergílio Ferreira numa “Manhã Submersa”, um documentário que acompanhou, como episódio “Zero”, a série “Manhã Submersa” na RTP. Mas fixemo-nos em Seia, e tentemos recordar como nasceu, em 1995, muitos anos depois destes contactos iniciais, o Cine Eco, Festival Internacional de Cinema e de Vídeo da Serra da Estrela. 
Este foi um festival que fui convidado a dirigir, e não um festival que eu tenha proposto realizar. Lembro-me que um dia, no Verão de 1995, recebi um telefonema de Paula Bobone, essa mesma, dos livros de regras de etiqueta, e das festas vip, a perguntar-me se estaria interessado em dirigir um festival de cinema e ambiente, na Serra da Estrela. Tínhamos sido colegas na Faculdade de Letras, quando ambos aí estudávamos, nos idos de 60. Encontrávamo-nos ocasionalmente em estreias ou jantares, nomeadamente na Casa da Comida, a convite do nosso amigo comum, Jorge Vale. Um festival de cinema é sempre uma boa oportunidade para divulgar o cinema, o ambiente era um tema que começava a tomar corpo nas preocupações das sociedades, eu já fora júri em dois ou três rudimentares festivais de cinema e ambiente (um deles, muito amador e bem intencionado, em Portalegre, outro em Espanha, mas ambos com o mesmo tipo de preocupações muito caseiras, a beata no chão, o lixo, os passarinhos nas gaiolas, uma educação ambiental muito rudimentar). Disse que colocava a hipótese, sim, e marcámos um encontro. Por essa altura a Paula Bobone trabalhava numa empresa de publicidade, a “Brainstorm”, em Lisboa, que tinha sido encarregue de promover um festival de cinema ambiental em Seia e de estruturar graficamente a ideia. Ideia essa que nascera de um grupo de amigos de Seia que tinham em comum dois interesses. Não será preciso muita imaginação para descobrir que esses interesses eram o cinema e o ambiente: uns mais cinema, outros mais ambiente, mas todos sinceramente apaixonados pelas temáticas. Como não sabiam organizar o certame, contrataram uma empresa de publicidade para ir dando os primeiros passos e, através da Paula Bobone, chegaram então a mim.
O cinema claro que me mobilizava muito. Já havia, por essa altura, integrado a equipa de vários festivais de cinema e até organizado alguns como responsável único. Fora o promotor principal de um festival sobre os “Audiovisuais no Ensino”, creio que em 1963, quando estava a meio do meu curso na faculdade de Letras, e que decorreu no Cinema Roma. Integrara as comissões directivas do Festival de Lisboa, mais ou menos por essa altura, ao lado do Luís de Pina, do Vasco Granja, do Dinis Machado. Tinha criado um Festival em Portalegre, um outro em Viana do Castelo, promovera festivais sobre o “Audiovisual no Ensino”, com edições em Lisboa e no Porto, criara igualmente, no ISCEM, durante o período em que aí dei aulas, um festival sobre o “Audiovisual na Comunicação Empresarial” (chamava-se FACE). Fundara e arrancara, em 1985, juntamente com Manuel Costa e Silva e Mário Ventura Henriques, com o Festroia (de que me afastei por desacordo de orientação “política”, logo após a primeira edição). Tinha uma vasta experiência em festivais e um gosto muito especial em trabalhar num tal empreendimento. Depois havia ainda um “pormenor” para mim muito significativo: tratava-se de uma iniciativa fora da rota dos grandes acontecimentos culturais, longe de Lisboa ou do Porto, no interior do País, bem perdida na belíssima Serra da Estrela. Descentralizar a cultura e a arte sempre me pareceu essencial.
Mas também me mobilizava o ambiente, sobretudo porque julgava que se poderia e deveria modificar muito do que até então eu vira nos festivais em que estivera presente e que tinham o ambiente como tema. Não me parecia que “o papel para o chão”, “o cigarro fora do cinzeiro”, “o tratar bem dos bichinhos e das plantas” fossem os temas candentes da nossa ameaça ambiental. Eram mais questões de boa educação do que de bom ambiente. Eram os “peanuts” com que os poderosos achavam que os putos se deviam entreter enquanto os grandes negócios eram esquecidos e as grandes ameaças caladas. Os jogos perigosos das grandes potências, a loucura consumista dos EUA, o estado caótico da URSS e dos países de Leste, o que se adivinhava e o que se pressentia, as guerras imperialistas, os novos colonialismos, as multinacionais em expansão, a vergonha do Terceiro Mundo abandonado, os terrorismos, o perigo nuclear, o egoísmo e a voracidade, a avidez e a cobiça das empresas, dos governos, das instituições, isso sim parecia-me que deveria ser mostrado e polemizado num festival de cinema cujo tema fosse o ambiente.
Por isso fui ao encontro com os responsáveis, com a “Brainstorm”, a quem expus um pouco das minhas ideias, depois confirmadas numa carta dirigida a Joaquim Luís Martins, de que recordo alguns passos:
“Depois da conversa havida ontem, aqui estou a sistematizar algumas das ideias que poderiam concretizar a minha futura colaboração com o CineEco. Em primeiro lugar coloco, como já tive oportunidade de vos referir, a questão da responsabilidade de toda a parte do Festival de Cinema e Vídeo. Parece importante que as responsabilidades se não esbatam, numa direcção multicéfala. Teria, no entanto, muito gosto de ficar como director técnico do Festival para estas áreas.
Na expectativa dessa questão inicial ser facilmente ultrapassada, como me deu a entender na nossa conversa de ontem, junto envio um esquema provisório para o CineEco 95.
Para lá das secções de Cinema e Vídeo competitivo, onde havia ainda que fazer algumas afinações, mesmo ao nível do regulamento, se ainda for a tempo, julgo que um Festival deste tipo deveria ser enriquecido com várias secções paralelas para dinamizar e diversificar as propostas oferecidas ao público. Assim, no campo do Cinema:
1º Outras Serras, Outras Gentes: Criação de uma secção de filmes de ficção, onde a temática versasse temas como a ecologia, a defesa do ambiente, a vida rural na serra, etc. Estes filmes passariam nas sessões da noite, numa sala de cinema normal. Poderiam passar rotativamente, em várias salas da serra da Estrela.
2º A Serra nos 100 Anos do Cinema: apresentar alguns filmes clássicos onde a serra tivesse um papel preponderante. Seria uma forma de integrar este Festival nas comemorações dos 100 Anos do Cinema, e simultaneamente mostrar filmes essenciais para esta temática.
3º A Cidade e as Serras: uma secção que procuraria mostrar filmes portugueses que tivessem sido rodados, primeiramente na Serra da Estrela, depois noutras serras, e onde se abordassem temas relacionados com a vida na serra, ou as implicações da migração para a cidade.
4. Vídeo educativo: apresentar, por exemplo, uma ou duas séries documentais dedicada a problemas ecológicos, ou de vida humana ou animal que tivesse como habitat natural a serra. Exemplos: “Desafios da Natureza”, de David Attenborough; “O Mundo Desconhecido”; “National Geographic”; “Portugal, um Retrato Natural”, etc.
(...) Publicações: para lá do programa geral do Festival, que abordaria os filmes a concurso e todas as outras secções, seria talvez interessante criar cadernos monográficos, sobre questões que se prendam com os temas abordados cada ano no Festival. Seria uma forma de fazer perdurar o certame no tempo, para lá dos dias da sua efectivação.
Comunicação social: convidar representantes da comunicação social, dos vários canais de televisão, da rádio, nacional e regional, da imprensa, diária, semanal e regional, para estarem presentes, a acompanhar o Festival.
Exposição: tentar todos os anos ter uma exposição versando temas que seriam abordados no Festival.
Creio que estas são algumas ideias a considerar, mas algumas outras poderão surgir. Gostaria de visitar Seia e as localidades vizinhas, para me inteirar das condições e das infra-estruturas existentes, pois muito do que se pode fazer depende delas.”
A “Brainstorm” serviu de intermediária entre o grupo de Seia e eu, após o que nos encontrámos para trocar ideias e definir tarefas. Do grupo de Seia faziam parte várias pessoas de que me tornei particular amigo, a começar pelo Carlos Teófilo, advogado, Angelina Barbosa e Nuno Santos, dois dos responsáveis pelo Parque Natural da Serra da Estrela, Mário Jorge Branquinho, da CM de Seia, e o seu presidente, Eduardo Brito, um dos impulsionadores da ideia e igualmente um dos seus patrocinadores principais, de que faziam parte ainda o IPAM, Instituto de Promoção Ambiental (que tinha em Aristides Leitão um dos responsáveis mais dinâmicos), o Parque Natural da Serra da Estrela, a Região de Turismo da Serra da Estrela (cuja participação era mais nominal do que real: ainda hoje um dos concorrentes a uma das primeiras edições do Cine Eco está para receber um prémio que a Região de Turismo da Serra da Estrela se tinha comprometido a pagar) e a Associação de Desenvolvimento Rural da Serra da Estrela. Como se vê, falava-se muito da Serra da Estrela, região reconhecidamente pobre, por isso não foi de estranhar que, desde a primeira edição, o festival contasse mais com o brio e a dedicação de quem o organizava do que com dinheiros público (ou privados). Ainda, por cima, tempos depois, o IPAM encerrou as portas e deixámos de contar com o seu apoio. 

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